sábado, 21 de julho de 2007

Palavras e versos acariciados


As mãos possuem íntima relação com o ato criativo das expressões artísticas, são elas que moldam, pincelam, desenham, concretizam as palavras e estreitam os limites entre a mente do artista e o olhar do público, logo, dão forma às idéias. Entretanto, existem aqueles que descobrem todo um universo de informações através das mãos e assim, dessa forma que mistura proximidade com os objetos e uma experiência mais efetiva com eles, desenvolvem a percepção e a sensibilidade.

Tendo em vista a dificuldades de inserir os deficientes visuais no mundo da literatura, o catarinense Tchello d'Barros resolveu disponibilizar parte de sua vasta produção para a editora Cultura em Movimento e Centro Braille, de Blumenau – SC. Em 2003, publicou, em Braille, o livro de poesias Amor à Flor da Pele, porém, antes disso já se envolvia em projetos de entidades direcionadas aos deficientes visuais, fazendo gravações, leituras e declamações de poemas para crianças e adultos.

Tamanha foi a sua surpresa quando soube que duas de suas obras tinham sido selecionadas pelos próprios participantes do projeto de Difusão de Literatura para Cegos do Centro Braille da Fundação Cultural de Blumenau, para publicação na antologia Blumenauaçu na Ponta dos Dedos. Os cordéis O Mistério de Blém-blém E Os Fantasmas de Jaraguá e O Justo Destino Do Pistoleiro Justino são produto de uma pesquisa que o autor realiza acerca da literatura de cordel, que lhe rendeu uma coleção de cerca de 300 exemplares e iniciou um novo ciclo em suas produções literárias. Utilizando elementos da linguagem e do imaginário popular, ritmo, expressividade, humor e crítica social, os cordéis de Tchello revelam a cultura alagoana em essência, seus caracteres mais marcantes, seus “causos” e personagens.

Residente em Maceió desde 2004, Tchello d'Barros está promovendo, por meio de seus cordéis, um intercâmbio nordeste – sul. É inegável o poder atrativo dessa maneira peculiar de fazer poemas, que são pendurados em barbantes, chamados cordéis – daí o nome literatura de cordel, cujas temáticas versam sobre os mais diversos assuntos como os “heróis” do sertão, que enfrentam seguidas vezes o diabo; as moças bonitas que encantam os rapazes nas festas e depois se descobre que elas já morreram; as criaturas fantásticas que assustam mesmo os mais religiosos. Mas tratam de temas em voga, como a corrupção, as guerras, a violência, de modo que realizam uma ponte entre a tradição e a atualidade.

Da observação à poesia, da poesia à forma

Segundo o autor, suas obras geralmente possuem como temática o ser humano, onde o pano de fundo se constitui pelas infinitas possibilidades da vida. Sobre o seu processo criativo, ele afirma: “Basicamente procuro estar atento às questões que de alguma forma me tocam, positiva ou negativamente, aos temas em que não dá pra ficar indiferente e, em seguida, passo às questões poéticas e estéticas do assunto, para só então partir para outra preocupação: as questões formais, as linguagens, os suportes ou os meios, e as modalidades artísticas para a obra vir ao mundo”.

O Mistério de Blém-blém E Os Fantasmas de Jaraguá relata a história de uma figura, o Blém-blém, também conhecido como Bate-ferro, que andava pelo bairro de Jaraguá batendo nos postes e suportes, supostamente para afastar os fantasmas que assombravam o local. Nele não figuram apenas o bairro e o personagem, mas também personalidades da literatura alagoana, no caso, Graciliano Ramos e Jorge de Lima, fazendo um passeio que percorre da Rua Sá e Albuquerque, passando pela Associação Comercial e o Coreto, até os Museus Théo Brandão e Chalita. Já O Justo Destino Do Pistoleiro Justino, cujo título assemelha-se a um trava-língua, conta a história de Justino, homem frio e cruel, que após estuprar uma moça por quem se apaixonou, e foi rejeitado, e matar o rapaz que a defendeu, foge de sua cidade e, ao saber que ela dera a luz a filho seu, mas morrera de parto, torna-se um matador por encomenda, com o intuito de se vingar de Deus. Misturando a crença no destino a uma alusão aos crimes de pistolagem, que, mesmo nos dias atuais, ainda aparecem nas manchetes, o cordel desenvolve-se em um clima de suspense com um desfecho surpreendente.

Os cordéis são o melhor canal para que a cultura alagoana e nordestina chegue aos participantes do projeto, pois expressam de maneira autêntica os valores, os hábitos, as crenças e tradições da região. Embora não possam enxergar, a forma como lêem é, no mínimo, tão poética quando o ato criativo. Letra por letra, verso por verso são por eles acariciados, desvendados e fruídos pelo toque, uma das vias mais íntimas de contato entre os indivíduos.

Artista multimídia

Com trajetória marcada por diversas mudanças de cidade e viagens, onde percorreu mais de 20 países em incessantes pesquisas, dentre eles Argentina, Inglaterra, França, Bélgica, Holanda, Uruguai, Chile e Peru, Tchello conseguiu a façanha buscada silenciosamente por muitos artistas. Desenhista de ilustrações para revistas e capas de livros, ator, pesquisador na área cultural, artista plástico, fotógrafo, escritor de contos, crônicas, poesias visuais e escritas, poemas, críticas sobre artes plásticas, cordéis e literatura infantil, e produtor cultural, sem falar que foi desenhista têxtil, tatuador e jogador de voleibol, a ele a expressão artista multimídia não soa pretensiosa.

Há 15 anos no meio artístico, aprendeu a fazer versos com o avô materno, quando possuía apenas 6 anos de idade. Sua primeira exposição foi de pinturas e ocorreu em 1993, ano em que começou a escrever poemas, que logo começaram a fazer parte de coletâneas. É autor de 6 livros: “Olho Nu” (1996), “Palavrório” (1996), “Letramorfose” (1999), “Olho Zen” (2000), “Amor à Flor da Pele” (2003), este teve alguns poemas lidos por uma deficiente visual na novela América, da Rede Globo, e “Cordéis” (2006).

O mundo globalizado, as múltiplas possibilidades estéticas e a Internet são responsáveis por uma grande transformação que ocorreu no universo criativo. Ao artista foi possível inovar, ousar, fundir formas de artes distintas e divulgar suas criações; ao público, um contato mais acessível com as obras. Tchello d’Barros tem experimentado alguns desses elementos da tecnologia digital, principalmente em suas poesias visuais, que são uma mistura de literatura e artes plásticas. Nessa vertente literária, ele produz sonetos, haicais, trovas e até mesmo cordéis.



Publicado no jornal A Notícia - Ano VI - Edição Nº 284

Um comentário:

Unknown disse...

Adorei suas matérias. São criativas e interessantes. Parabéns menina! Continue assim. Você é 1000!