quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Lacuna

Há quase um mês, o Cortinas Abertas está sem atualizações. Tal lacuna se deve a um período de reflexão para reformulação da proposta do blog.


Até perto, com mais novidades!


Paula Felix

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Flor de mandacaru

Quem está habituado a ouvir, nas tardes de sábado, a bela voz de Gal Monteiro, no programa Vida de artista, da rádio Educativa FM, vai se surpreender com sua atuação no campo das letras. Propagadora do jornalismo cultural, lançará no dia 23 de outubro, na Bienal Nacional do Livro, um livro de contos que expressam a sua essência, as observações que faz do cotidiano, utilizando personagens do seu convívio, das ruas e de viagens que realiza, com algumas pitadas de ficção. Se eu calar você me esquece, se eu contar você me abraça? foi um dos vencedores do prêmio Alagoas em cena, de 2006, na categoria conto.

O livro, editado pela Edufal, reúne 10 contos de temáticas completamente diferentes, onde Gal transita entre narradora e personagem, alternando entre um e outro, em um intenso mergulho no universo da arte de contar histórias, uma grande paixão da jornalista. Quando se coloca como protagonista de um conto, dota-se de aspectos que gostaria de ter, caracteres que revelam seus anseios e pulsões mais intensas. Segundo ela, a inscrição no projeto deu-se de forma um tanto desordenada, caótica, da seleção dos contos à escolha do título, principalmente porque, na época, estava com impasses profissionais, além das típicas problemáticas pessoais, que,de certa forma, fomentam a produção artística da autora.

Primeiro, ela fez um apanhado de tudo que havia produzido, principalmente nos tempos de faculdade, embora tenha o hábito de escrever desde a infância, quando preenchia páginas e mais páginas de diários, descrevendo “as ninfas dos bosques de Viena”. Alguns deles passaram por revisões, outros foram totalmente reformulados, a exemplo de seu poema que ficou em segundo lugar, num concurso promovido na época em que cursava jornalismo na Ufal, encontrou-o manuscrito, conservando a mancha de vinho que sobre ele caiu, no dia da premiação.


Realismo fantástico


Seus contos possuem algumas descrições dos absurdos da vida, beirando o realismo fantástico, como no conto em que descreve a saga de dois vendedores de lingerie, mineiros, que, após descobrirem o que é marketing empresarial, no sentido de inovar e ampliar o seu mercado, fazem uma liquidação dentro de uma igreja; outros deságuam no campo da biografia; alguns versam sobre o jornalismo, mas todos traduzem Gal Monteiro, em especial o conto que encerra o livro De volta à Vila Rica - De Marília & Dirceu a Maiakovski & Lili. A autora possui uma intensa relação com Minas Gerais, terra que lhe deu vínculos, amores e vivências.

Então, só restava a escolha do título para finalmente inscrever-se no Alagoas em Cena. Embora goste de intitular textos, sentiu uma certa dificuldade em nomear seu primeiro livro, porém, em um insight, dentro do ônibus, o nome simplesmente veio, sem um sentido previamente elaborado, mas bastante conveniente à cena cultural alagoana e ao projeto de Gal Monteiro. O título possui várias conotações, pode ser traduzido como a necessidade do artista, de um modo geral, de ser reconhecido, a luta do conto contra o silêncio, a efemeridade da palavra ou, de forma mais simples, a sede por um afago, por um instante de atenção após dividir-se determinado instante.


Um Deus que morre todo dia


O prefácio foi elaborado pela própria autora, com a denominação Um Deus que morre todo dia, levanta questões filosóficas acerca do ofício do escritor, que nasce e morre todos os dias, pois é dotado da capacidade de criar e recriar os fatos. Daí a relação que faz entre este e a fênix, ave mitológica que renasce das cinzas. Ela classifica o escritor como “um ser dotado de emoções, de todas elas, se preciso. Ora um personagem, ora outro, ele segue formando um caleidoscópio que, ao fim de tudo, é sua imagem e semelhança”. A orelha é de autoria de Elenilda Oliveira, também jornalista e amiga de longas datas de Gal, já Agélio Novaes, artista plástico, concedeu uma de suas obras para a ilustração da capa.

Seus personagens são geralmente amigos que, algumas vezes, têm dificuldade para se “encontrar” nas ações e peculiaridades retratadas por Gal, que o faz com muita sutileza, trocando-lhes os nomes e dando-lhes uma nova personalidade.

Fã declarada de histórias em quadrinhos, considera-se uma leitora aberta aos mais diversos segmentos da literatura e acredita que os autores que conhece constituem em uma base para suas produções, mas não indica influências específicas, apesar de admirar Machado de Assis, Graciliano Ramos e escritores contemporâneos como Sidney Wanderley, Arriete Vilela, Carlos Nealdo, Vanessa Alencar, Nilton Resende, enfim, uma vasta lista que engloba diferentes estilos, de maneira rica, e que cresce gradativamente. Em geral, focaliza seus contos em suas experiências, na percepção da força das cidades e na expressividade dos desconhecidos, que tanto se revelam, mostram-se como protagonistas nos pontos de ônibus e esquinas.

Gal Monteiro diz que seus textos se enquadram em um tipo de “romantismo urbano”, visto que buscam realizar uma “leitura romântica do mundo”, mas não ligada a príncipes encantados e afins, apesar de ter uma forte admiração por castelos, sótãos, e porões. É uma visão que se prende ao belo em suas mais variadas formas, de modo libertário e desapegado dos padrões convencionais, “impregnada de informações, com ruídos na comunicação, que contém as decepções, mágoas, tristezas e experiências de todos os quilates, um verdadeiro refúgio para quando se deseja sair da realidade”, afirma.

Ela explica que possui uma relação crítica com seus escritos, pois não costuma se deslumbrar com os comentários, geralmente elogios, que recebe de amigos, como a jornalista Lúcia Rocha. Também está aberta a críticas, visto que são etapas fundamentais ao processo criativo de qualquer artista, seja ele da música, do teatro ou da literatura.


Musicando versos


No que concerne ao campo das artes, Gal Monteiro enveredou por grande parte das vertentes. Além de poesias e contos, possui composições com os cantores Deyves e Júnior Almeida, musicando, inclusive, alguns versos, tendo a voz como instrumento musical. Participante do Coretfal, ela já fez alguns shows, o último, em 2004, batizado como Fênix, relembrou os tempos em que era vocalista da banda Caçoa mas não manga, grupo formado por 11 amigos, que movimentou a cena musical alagoana nos anos 1980.
Acostumada ao ritmo frenético das redações de jornal, sente-se bastante a vontade com a liberdade que o texto literário possui, que se permite ficar inerte, por dias, anos, aguardando o momento conveniente para ser moldado. A experiência da participação em um projeto que contempla produções locais estimulou bastante Gal Monteiro, não só a produzir novos contos, mas também na elaboração de um novo livro.

Se eu calar você me esquece, se eu contar você me abraça? poderia ser comparado à flor de mandacaru, que se mostra altiva e bela, mesmo dentre os espinhos e a paisagem árida, pois expressa o fluir das emoções, a precisão observadora do jornalismo aliada à visão dos indivíduos como personagens de uma encenação ilimitada, imprevisível, onde os sentimentos se misturam e as mentiras são verdades disfarçadas e maquiadas, prontas a serem contestadas ou incluídas nos padrões do crível.


Trecho do livro


“Os olhos do rapaz brilhavam, sob o sol frio de final de tarde e, mal disfarçadas, duas lágrimas grossas e sentidas desceram-lhe pela face rosada. E mais duas. E mais outras tantas. Lúcia apenas pousou uma das mãos sobre o ombro do moço, lembrando-lhe que poderia escolher entre falar e apenas desaguar”. (De volta à Vila Rica - De Marília & Dirceu a Maiakovski & Lili, pg. 77)

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Recitador de encantos


Foto: Raul Spinassé

Na época em que os alto-falantes, espalhados pelas ruas, tocavam Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e Dolores Duran, um grupo de garotos percorria a feira de Murici, gastando suas moedas com carrinhos e cavalos de pau, fabricando, com suas brincadeiras, os corriqueiros sonhos infantis. Entretanto, um deles era diferente.

Ele preferia comprar violinhas de cordas de arame, bem como montar baterias com caixas de papelão e panelas, que ficavam bastante amassadas devido às repetidas pancadas, o que muito desagradava à sua mãe. Daí a razão de concluir que a música entrou em sua vida, além de precocemente, em um processo inverso: ela o escolheu, foi uma intensa paixão que soube conquistá-lo, pois a ele se insinua e instiga-lhe dia-a-dia, tal que a musa de Internet Coco, sua canção mais conhecida, é “um vício, um custo benefício, com cara de ofício, com jeito de divã”.

Este é Mácleim, cantor, compositor e um dos artistas mais atuantes do mercado fonográfico alagoano, que se considera um “recitador”, alguém que recicla os elementos produzidos pelos grandes nomes da música. Dono de uma carreira marcada por participações em festivais e shows em território nacional e no exterior, é autor de três CDs: Panambiverá, Internet Coco e Ao vivo e Aos Outros, e, em agosto deste ano, uma música de sua autoria, Valsinha de Esquinas, ficou em terceiro lugar no concurso internacional Lusavox, tendo como intérprete a cantora Irina Costa. Na próxima terça-feira, 09 de outubro, ele vai apresentar pela primeira vez o show Esses Poetas, parte do projeto de mesmo nome que vai trazer um CD e um livro, produzidos pelo selo Batuta, em uma convergência entre literatura, artes plásticas e música, que serão lançados em 2008.

Versos cantados

O trabalho de Mácleim reúne obras de 13 poetas alagoanos musicadas por ele, o que se constitui em um desafio quando se é um artista libertário em suas composições, que se permite trabalhar de modo circunstancial, concebendo a esmo a porção bruta para, aos poucos, lapidá-la. Era preciso musicar os poemas sem alterar suas estruturas, com coerência e realçando-lhes a expressividade, tarefa na qual “a inspiração ocorre em função do trabalho e não o contrário” - diz. E foi o que ele fez, manteve as características originais e a alma dos poemas, até porque os considera obras consumadas.

Na voz de Mácleim estarão versos de Arriete Vilela, Ledo Ivo, Jorge de Lima, Maurício de Macedo, José Geraldo, Sidney Wanderley, Diógenes Júnior, Jorge Cooper, Gonzaga Leão, Edvaldo Damião, Ronaldo de Andrade, Paulo Renault e Otávio Cabral, integrantes de diversas gerações da expressão literária alagoana, cujas obras possuem valor histórico, cultural e artístico.

Inicialmente um projeto individual, onde a coletividade era representada pelos poetas, adquiriu novas dimensões após um período de maturação de sete anos, desde o processo de pesquisa dos poemas até a transformação destes no que denomina como “uma estética musical”. Alguns artistas foram convidados para fazer uma participação especial e logo se formou uma miscelânea que reúne a nata da música alagoana: Leureny Barbosa, Carlos Moura, Wilma Araújo, Everaldo Borges, Felix Baigon, Norberto Vinhas, Almir Medeiros, Jiuliano Gomes, Júnior Almeida, Clara Barreiros e o baterista holandês Olaff Keus. Além de artistas do cenário musical brasileiro, a exemplo de Edu Morelenbaum, David Ganc, Fernando Melo, Carlos Balla e Djavan, esses três últimos, também alagoanos.

Djavan foi o último artista a confirmar sua presença no projeto Esses Poetas. Convidado no dia da inauguração do Teatro Gustavo Leite, no Centro de Convenções, ele aceitou, entretanto, não acertou com Mácleim os detalhes sobre essa participação, deixando para uma ocasião mais oportuna. Assim que deu início à produção do projeto, Mácleim avisou a Djavan por e-mail e ficou aguardando uma resposta, que veio recentemente, numa entrevista dada por ele, na qual deu o recado de que iria participar do projeto. Novos contatos já foram feitos e Djavan vai conceder sua voz a uma das canções do CD entre os dias 18 e 22 de outubro, ou seja, daqui a poucos dias, em seu próprio estúdio.

Porém, nesse primeiro show, não será possível trazer todos esses artistas, então foi formada uma banda base, composta por Dudu Athayde – bateria, Felix Baigon – contrabaixo acústico e elétrico, assinando também a direção musical, Jiuliano Gomes – piano, teclado e loops, e Everaldo Borges – saxofones e flauta. Mas, com o intuito de deixar o público em contato com o clima do CD, serão acrescentados loops e samples, que são inserções sonoras, tais como efeitos, guitarras, vozes, percussões e instrumentos exóticos, como alaúde, cítara e tabla. No repertório, além dos 13 poemas, Mácleim vai tocar músicas de outros CDs de sua autoria, como Nigromantes, Outubro ou Nada e Internet Coco. Os convidados especiais serão: Leureny Barbosa, Wilma Araújo, Júnior Almeida e Wilson Miranda.

Processo de gravação do CD

Para a gravação do CD, foi feita uma pré-produção na casa de Jiuliano Gomes, por meio de um processo coletivo, no qual foram trabalhadas todas as idéias de Mácleim, que, apesar de ter a possibilidade de contar com softwares avançados, não abriu mão de um gravador de fita. Essas idéias foram passadas para Everaldo Borges, que as apresentou aos convidados. Depois eles foram para o Rio de Janeiro, onde gravaram as bases das músicas – bateria, baixo e piano acústicos, estabelecendo a configuração instrumental do projeto. Um detalhe interessante é que a gravação foi realizada da mesma forma que se fazia antigamente: Carlos Balla, Jiuliano e Felix Baigon, após vários ensaios, gravaram as canções do início ao fim, em tomadas definitivas e sem cortes, tocando juntos, como num show ao vivo – atualmente, os músicos tocam sozinhos e depois tudo é “costurado”. Em Maceió, foram gravados os metais, os loops e as vozes dos artistas convidados.

De volta ao Rio, eles iniciaram o processo de mixagem e masterização, que nada mais é que a finalização e a padronização do CD, uma atividade bastante cansativa, devido às infinitas possibilidades que lhes eram dadas para compor o projeto. Entretanto, segundo Felix Baigon, o clima em estúdio era sempre muito agradável e construtivo, não só pelo contato com músicos experientes, caso do baterista Carlos Balla, que já tocou com artistas renomados, como Gal Costa, Djavan, Chico Buarque e Caetano Veloso, mas pelo choque de idéias, que levava a discussões sobre a escolha do que era ou não relevante para a concepção do trabalho.

Ele e Mácleim destacam um incidente que ocorreu no arranjo de Quem, poema de Sidney Wanderley. Baigon se enganou e enviou Zumbi, poema de Jorge de Lima, para o arranjador Edu Morelenbaum. O lapso só foi notado quando eles foram ouvir a música, para saber como tinha ficado. O grande problema é que Zumbi já possuía um arranjo de metais – saxofone, trompete e trombone, elaborado por Jiuliano e Everaldo, e Morelenbaum, havia composto um arranjo de madeiras – clarinete, clarone e flautas. Após um período de caos e algumas análises das partituras, eles notaram que os arranjos casavam perfeitamente e utilizaram os dois. E Quem? ganhou um novo arranjo.

O projeto

Acostumado a embeber-se de diversas vertentes das artes como o cinema, as artes plásticas e, principalmente, a literatura, como de Nigromantes, composição cujo tema explícito é a obra Dom Quixote de La Mancha – de Miguel de Cervantes, Mácleim faz, em Esses Poetas, um mergulho no universo das expressões artísticas alagoanas, através das canções, dos poemas e da proposta de seu projeto, que une música, literatura e artes plásticas.

Para a composição do livro e do encarte do CD, ocorrerá um concurso de desenho, realizado em escolas públicas das cidades de origem dos poetas, cujo tema será a impressão que os estudantes tiveram ao ler os poemas e escutar as canções. Tal iniciativa é um incentivo à divulgação e ao estudo da literatura alagoana, a fim de promover o reconhecimento de seus produtos culturais e despertar novos talentos, nas três áreas de abrangência do projeto Esses Poetas - música, literatura ou artes plásticas. Além disso, haverá as biografias, que virão resumidas no encarte, e caricaturas dos poetas, feitas por Simone Cavalcante e pelo jornalista Ênio Lins, respectivamente. Todavia, tudo isso tem previsão para ser lançado em 2008, logo, o público terá apenas o show para contemplar, por enquanto.

Esses Poetas

Esses Poetas pode ser considerada uma produção de destaque, um estandarte da cultura alagoana. Sua primeira apresentação será no dia 09 de outubro, terça-feira, no Teatro Deodoro, às 19:30h. Como em todos os eventos que fazem parte da grade do projeto Teatro Deodoro é o Maior Barato, o ingresso custa R$ 2,00. Informações: 3315-5665

Versos do poeta sapateiro

Cena do documentário O Lambe Sola


Entre pregos e solados, cola e sapatos, poemas matutos, que falam de momentos do cotidiano, utilizando a linguagem do homem simples, caipira na escrita e na forma de declamar, mesclando sabedoria popular, pitadas de humor, com espaço até para instantes lascivos. Essa foi a realidade capturada por Celso Brandão, no curta O Lambe-Sola, cujo protagonista é o poeta e sapateiro Antonio Aurélio de Morais, que se auto-intitulou Lambe-Sola, mas também é conhecido como Mestre Tonho Lambe-Sola e Pé Quebrado. Celso afirma que esse apelido nasceu do ofício de Antonio, visto que, no ato de colar os sapatos, os sapateiros fazem com o pincel um “movimento de lamber”.

Lambe-Sola nasceu em Atalaia, mas passou grande parte de sua vida em Viçosa, onde aprendeu e exerceu sua profissão. Apenas aos 45 anos de idade é que iniciou sua alfabetização, percorrendo de cartilhas do ABC a gramáticas e dicionários renomados, como o Dicionário Aurélio. Do aprendizado passou para a composição de poemas, chegando a escrever um livro “Versos de um Lambe-Sola”, que já está na terceira edição e possui 40 poemas, alguns deles selecionados para compor o documentário, a exemplo de “Pé-Quebrado Profissão Ingrata” e “Cassação dus Santos” – ver box. O trabalho de captura de imagens começou em 2002, porém, Celso teve que fazer uma viagem e interrompeu a produção de O Lambe-Sola. Nesse período em que o documentário ficou parado, Mestre Lambe-Sola sofreu um AVC - Acidente Vascular Cerebral e parou de fazer poemas, entretanto não deixou de declamá-los. Os trabalhos foram retomados após o cineasta ter assistido a alguns filmes sobre pessoas deficientes durante os jogos Para Pan-americanos, ocorridos no Rio de Janeiro, então, de volta a Maceió, Brandão muniu-se de câmera e partiu para as gravações do que se pode denominar como segunda parte do documentário.

O tempo é um elemento bastante importante no curta de Celso. Os 18 minutos e 45 segundos são marcados pela presença constante de um trem, que surgiu por acaso nas gravações e foi muito bem aproveitado. Entre os versos de Lambe-Sola, as passagens do trem e cenas da cidade, foram incluídas fotografias antigas, que ilustram e dão dinamicidade ao documentário. Outro fator de relevância é o jogo de similaridades e contrastes: enquanto o poeta declama Cassação dus Santos, vê-se ao fundo a imagem de uma igreja. O poema “A Si Pão Fosse Muié”, também conta com esse diálogo entre imagem e texto, pois, no instante em que o Mestre fala: “Gosto munto das muié / Dô tudo quanto elas qué / Rôpa, carçado i carinho / Mai si ela num fô fie / Ganha tombém pontapé / I mãozada nu fucinho”, aparece um homem batendo em uma boneca de pano. Segundo Celso, era apenas um rapaz na rua, que estava com a boneca - enorme, por sinal, e começou a bater nela. “Mas essa associação foi um trabalho da edição, às vezes, quando eu sugeria alguma coisa, o Pedro Octávio já tinha feito”, diz.

O contraste é dado pelas duas épocas retratadas, os anos de 2002 e 2007. O Mestre Lambe-Sola gesticulando, cheio de expressões, falando em pé ou martelando um sapato, de camiseta regata é completamente diferente do “outro” Mestre Lambe-Sola, camisa branca, boina xadrez, sentado, colocando a mão no queixo quando esquecia algum fragmento do poema. E a câmera se aproximando cada vez mais do rosto dele, dando dramaticidade às cenas, direcionando o olhar do espectador. Entretanto, em nenhum momento as conseqüências do AVC figuram no documentário. Apesar do “esquecimento” estar em close, o que se destaca sempre é a atuação do poeta.

O olhar e os personagens

Pedro Octávio é o sobrinho de Celso. Aos 21 anos, já trabalha com edição de vídeos e a produção de curtas experimentais. Em 2004, fez sua primeira atuação em produções do tio, editando o filme “O dote de José Chalé”, porém, embora seja uma atividade que demanda muita atenção e horas de trabalho, ele afirma, com muita naturalidade, gostar do que faz. O processo de edição de O Lambe-Sola durou duas semanas, nas quais foram analisadas as mais de duas horas de gravação, selecionadas as cenas e realizada a montagem do documentário. Pode-se afirmar que a quantidade de horas gravadas foi muito pequena, visto que, no universo do cinema, é possível até ser necessário gravar 100 horas para produzir 1 hora.

Celso Brandão alega a sorte como o fator para tal façanha, mas, tendo em vista que ele é o cineasta que mais produziu em Alagoas, a experiência também deve ter sido de grande valia. Dentre suas obras estão: Reflexos, baseado na canção Clair de Lune, de Claude Debussy; Semeadura; Faramim Iemanjá; Alegrando; Feira do Passarinho; Passeio no Céu – Torres Andorres; Medicina Popular; Cerâmica Utilitária Cariri; Mandioca da Terra à Mesa, filmes que alcançaram premiações no extinto Festival de Cinema Brasileiro de Penedo, além de A Sede e a Fonte; Ponto das Ervas, que concorreu ao prêmio de melhor trilha sonora no Festival de Brasília, participou do Medical Filme Festival, em Nova Iorque, e foi produzido por Cacá Diegues, que denominou as produções de Celso como “pequenas obras-primas”; Chão de Casas e Memórias da Vida e do Trabalho, selecionado para o Festival Internacional de Filmes Etnográficos.

O olhar dele foi moldado pela fotografia, paixão que anda de mãos dadas com o cinema. Ele ganhou sua primeira câmera de seu pai, aos 13 anos, e desde então não parou mais de fotografar. Quanto ao cinema, recebeu uma câmera Super-8 de uma amiga, que lhe deu a responsabilidade de fazer um filme. Foi quando ele fez Reflexos e continuou a produzir incessantemente. Porém, com a chegada do VHS, uma mídia mais perecível, ele se desencantou um pouco com o cinema e se dedicou à fotografia em preto e branco. Seu retorno à sétima arte se deu devido às novas tecnologias, que são mais baratas e oferecem um resultado com qualidade, em especial as mídias digitais.

Quando perguntado sobre como conhece seus personagens, ele responde de forma sucinta: “Andando”. Em viagens, passeios, enquanto volta para casa, enfim, em qualquer ocasião, Celso procura se aproximar das pessoas e assim fica sabendo de suas vidas e histórias, o que pode lhe trazer uma infinidade de idéias e, às vezes, já lhe oferecem algo pronto, como um pescador que fez um discurso sobre o lançamento de impurezas de uma usina no rio em que ele pescava, gravado por Celso, e que poderá ser aproveitado para um curta acerca da questão ambiental.


O Lambe-Sola

O Lambe-Sola teve sua primeira exibição no dia 24 de setembro, dentro da programação da II Mostra de Documentários do Cine Sesi Pajuçara, e foi bem recebido pelo público. Sobre a sensação de ver seu documentário, Celso diz: “É bom ver um vídeo projetado em tela de cinema, com uma platéia de idosos e jovens, com a presença do protagonista”. Na ocasião, Antonio Aurélio de Morais, o Mestre Lambe-Sola, estava lançando a terceira edição de seu livro. Com música de Zé do Cavaquinho, natural de Viçosa, O Lambe-Sola contou com o apoio no roteiro e na produção de Fernando Fiúza e Sidney Wanderley.

O cinema alagoano


De acordo com Almir Guilhermino, também cineasta, a produção cinematográfica de Alagoas é mais voltada para documentários, em virtude de todas as necessidades estruturais e financeiras que uma obra de ficção demanda. “No cinema alagoano é possível fazer três cortes: os anos 1980, os anos 1990 e esta nova década”, explica. Mas ressalta: “Chamam de cinema, mas, na verdade, são vídeos, já que não são produzidos em película”. A primeira geração, composta por ele, Brandão, Joaquim Alves e Hermano Figueiredo é proveniente dos cineclubes, onde assistiam a filmes não comerciais, portanto, não submetidos à censura, um cinema atrelado à contestação. Mas se existiu uma mola propulsora para as produções alagoanas foi o Festival Cinema Brasileiro de Penedo, ocorrido na década de 1970.

Ele afirma também que as obras alagoanas no campo do cinema têm bastante qualidade, mas o que falta é incentivo do Estado e interesse do público, embora tenha citado o caso do documentário de Siloé Amorim, O Quebra de Xangô, como um exemplo positivo, visto que em sua exibição, o Teatro Gustavo Leite, do Centro de Convenções, estava lotado. Logo, a situação está se tornando melhor, “principalmente pelo apoio do Sesc e do Sesi, na figura do Marcos Sampaio”, completa.

Autor dos filmes Tana’s Take, Anônima Paulicéia de Person, Yerma, Colagens, Acendedor de Lampiões e documentários, Guilhermino atenta para a necessidade de incentivar a produção de filmes da nova geração, citando como exemplo os estudantes de Comunicação da Ufal, a quem ele considera que os cineastas mais experientes deveriam dar apoio na produção e no que fosse necessário. Além disso, lembra da importância de reativar as leis de fomento ao cinema e sugere que ocorra um novo festival de cinema alagoano, para “amarrar” todas as produções e apresentá-las ao público.

Como nomes do cinema alagoano, pode-se citar, além de Celso Brandão e Almir Guilhermino, Hermano Figueiredo, Joaquim Alves, Pedro Rocha, Werner Salles e Thalles Gomes Gamello.

Trechos do livro:

Pé-Quebrado Profissão Ingrata


“Trabáio a mai de trintano / Na arte di sapatêro / Nunca consegui dinhêro / Argum / Trabáio às vêis in jinjum / Di manhã inté mêio-dia / Passando tôda gunia / Di fome...”


Cassação dus Santos

“Vala-me Deus, tá chegando / U fim dessa geração / Sêio qui in riba du chão / Tudo vai levá u créu / Taí u siná izato / Já tão caçando us mandato / Inté dus santo du céu...”

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Na ponta da agulha


Eles já foram febre mundial e são os responsáveis pela repercussão de diversos artistas que, até os dias atuais, são considerados verdadeiros ícones no campo musical. Por todo o charme que possuem, são o “black tie” utilizado em ocasiões mais sublimes, onde se cria uma atmosfera mais elaborada, semelhante a um ritual. Assim é o universo do vinil, essa mídia que foi jurada de morte pelos CDs e MP3 players, mas que atravessa décadas encantando gerações e sobrevivendo à poeira e ao esquecimento, seus maiores inimigos.

Desenvolvido no início da década de 1950, o disco de vinil trouxe a possibilidade de gravar mais músicas, com uma qualidade sonora superior, onde cada lado poderia ter até 20 minutos de reprodução, caso dos LPs – Long Plays, discos de 31 cm de diâmetro, que tocam a 33 1/3 rotações por minuto, e foram mais utilizados na veiculação de álbuns completos. Outro aspecto que contribuiu para a aceitação dessa nova tecnologia foi sua durabilidade e resistência a quedas, choques e manuseio, sendo também mais leves que os discos de goma-laca, de 78 rotações, utilizados até o fim dos anos 1940.

É possível afirmar que a era do vinil engloba o período mais rico e criativo da música, desde os detalhes metodicamente costurados pelos eruditos, passando pela preciosidade melódica e virtuosismo dos jazzistas, até as inovações rebeldes do rock e o romantismo embalado pelas ondas da bossa nova. Também esteve presente no século mais conturbado da história da humanidade, o século XX, onde sentimentos díspares se viram de mãos dadas, lágrimas e alegrias em meio a duas guerras de proporções mundiais, reunificação de povos, revoluções no âmbito do comportamento, paz e amor, fogueiras de sutiãs. No Brasil, os amores adocicados e as belas musas cariocas que seduziam “inocentemente” os malandros, o silêncio da ditadura e a euforia do futebol. Cada fato foi eternizado nas ranhuras do vinil, que serviu como suporte para aqueles que preferiam musicar suas emoções mais intensas, transformar em canção aquilo que estava diante de seus olhos, uma atividade antiga, registrada principalmente nos Salmos da Bíblia e que se constitui em uma das mais importantes artes que o homem desenvolveu.

Em tempos de música “compacta”, com a praticidade de colocar trilha sonora em todas as atividades diárias, por meio de listas quase quilométricas, principalmente com o advento do MP3, são poucas as pessoas que ainda se dispõem a comprar e ouvir discos de vinil, mas em Maceió existe um grupo de apaixonados que não se desfazem desse hábito, considerado por seus adeptos como uma terapia que devolve o ânimo por proporcionar instantes de prazer. Através do vinil, eles fizeram amigos, adquiriram conhecimentos sobre a história da música e passaram a reunir acervos com verdadeiras raridades.


Trabalhando com sucessos


O preço de um disco de vinil varia entre R$ 0,50 e R$ 3.000,00, ou mais. Tal variação se deve a aspectos referentes à raridade, séries especiais, estado de conservação, fatores muito prezados pelos colecionadores. Kinkas, proprietário da loja O Vinil, que trabalha a pelo menos 36 anos nesse ramo, diz-se um admirador do vinil, possuindo uma coleção de cerca de dez mil discos, com preciosidades pelas quais tem o maior cuidado: “Tem discos que não troco, não empresto, prefiro nem mostrar”. No intervalo entre um telefonema e outro - o telefone tocava repetidas vezes, com pessoas perguntando sobre a chegada de discos e pedindo para que ele fizesse gravações de discos para CDs, um serviço bastante requisitado, ele falava sobre o que diferencia o vinil das outras mídias: “Veja só o vinil: ele é rico em informações, já na capa, parece até um quadro”. Kinkas faz tal afirmação pelo fato dos LPs apresentarem algo trabalhado, como a disposição de cores e letras, contendo informações técnicas que situam o ouvinte: “Eles sempre têm o ano e, às vezes, a data do disco, coisa que o CD não faz”, afirma. Ele acredita que o vinil saiu do mercado devido a uma manobra para a inserção dos CDs, mas acredita que a procura por ele nunca vai acabar.

O negócio começou com seu pai, também conhecido como Kinkas, quando este abriu uma loja de discos, na cidade de Rio Largo, onde vendia os exemplares que acumulou nos tempos em que teve uma boate chamada Xarangá. A loja não possuía nome, mas era bastante conhecida. “Quando a gente trabalha com sucessos, a venda é maior”, diz Seu Kinkas, em referência à época em que entrou nesse ramo. Contando com serviço de som, tão típico às cidades de interior, o estabelecimento depois foi transferido para Maceió e se instalou na Feira do Passarinho. Ele abriu ainda um ponto no Mercado da Produção, mas, há três anos, sofreu um acidente e parou de trabalhar.

Com 80 anos, Seu Kinkas não conseguiu se aposentar, embora tenha trabalhado boa parte de sua vida, não só com os discos, mas em várias fábricas de tecidos. Dizendo ser uma pessoa sentimental - “qualquer coisa faz meus olhos ficarem cheios de lágrimas”, ele relembrou os nomes da música brasileira que mais o agradam: Sivuca, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto e João Gilberto.


A magia que encanta novas gerações

Mas quem pensa que essa paixão é só para quem conviveu com os bolachões, uma forma carinhosa de chamar os discos de vinil, está redondamente enganado. Gabriel Passos tem apenas 13 anos e, desde 2003, alimenta uma coleção que já chega a 1.504 exemplares, todos originais, visto que ele tem preferência pelos clássicos e pelas raridades. Sua primeira lembrança de um contato com os discos é de quando possuía três anos de idade, na fase das descobertas, ao encontrar alguns LPs, enquanto mexia nos CDs de seus pais. Os anos passaram e ao completar nove anos, reencontrou o elo perdido com a música e iniciou, sem a influência de ninguém, uma coleção de discos, cujo ponto de partida foi a obra dos garotos de Liverpool, os Beatles.

Gabriel ia sempre às quintas-feiras comprar discos e, em apenas um ano, já estava com 700 álbuns, mas foi entre 2004 e 2005 que deu um grande salto, passou a freqüentar os “recantos” e a conhecer colecionadores. Dessa forma, adquiriu uma bagagem cultural e intelectual não só no âmbito da música, mas em assuntos ligados à história, em especial dos anos 1960 que, junto com os anos 1950, compõem o período que o garoto mais aprecia, pois ele afirma, com muita certeza, não ser eclético. Seu acervo compreende obras, principalmente, da década de 1910 até 1970, desde artistas mais famosos, como Beatles, Rolling Stones, James Brown, Dave Brubeck, Jair Rodrigues, Elizeth Cardoso, Erasmo Carlos, Roberto Carlos, Martinha – inclusive trabalhos em espanhol desses três últimos e Moacyr Franco cantando Soul Music composta por Pelé, até discos do que denomina “Jovem Guarda obscura” e músicas caseiras. Dentre os artistas fora dos holofotes estão: Hibernon Tenório, The Killers – uma banda uruguaia de 1970, Edson Wander, Ave Sangria, Procrol Horum, entre outros.

Apesar do seu hábito de comprar vinil, Gabriel adquire alguns exemplares através de trocas e doações, tendo, inclusive, álbuns que vieram de acervos de rádios. O contato com outros colecionadores, em geral mais velhos que ele, trouxe-lhe muito conhecimento, é realmente impressionante ver uma pessoa tão jovem com tanta noção de história política e social, brasileira e mundial, então, pode-se afirmar que o universo do vinil é também sua escola. Sobre a qualidade sonora dos LPs, ele explica de forma sinestésica: “Nele, a música fica mais solta”.

Para ouvir as obras de sua coleção, Gabriel conta com quatro vitrolas, uma Philips portátil - 1960, uma Philips - 1970, uma National americana – 1960 e uma Gradiente Pick Up. Sobre o que os discos de vinil representam na sua vida, ele, após uma longa pausa, diz: “Como diz um amigo meu, eu como vinil no café da manhã, no almoço e no jantar. Minha vida, meu hobby, minha ocupação principal são os discos. O vinil é tudo na minha vida!”.

Já Raul Spinassé, 19 anos, estudante de Jornalismo do Cesmac, passou a se interessar por discos há cerca de três meses. Tudo começou quando viu a coleção do pai de um amigo seu: “Fiquei encantado! Então, imaginei que ninguém dá valor e eles são preciosíssimos...”, reflete. Atualmente, compra apenas os discos que mais lhe atraem, porém, seu objetivo é estudar sobre a história da música, pesquisar sobre a carreira dos artistas e tentar adquirir seus trabalhos. Sua primeira aquisição foi o Disco Dois, da banda Legião Urbana e sua, por enquanto, pequena coleção conta com álbuns de Chico Buarque, Noite Ilustrada, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Simone, Cazuza e Vinícius de Moraes, além dos discos que tem recebido de um tio. Trabalhando com fotografia, sempre reserva uma quantia para a compra de discos de vinil, que, na sua concepção, têm o poder de transportá-lo para outras épocas.

Ele faz uma interessante observação: “O mágico do vinil é que não dá para pirateá-lo”, e a pirataria realmente não era um problema para os artistas que imprimiram suas obras em vinil, entretanto, é uma questão muito pertinente ao mundo dos CDs que, além de conviver com uma frenética reprodutibilidade, ainda tem que suportar os ciclopes, ditos musicais, que invadiram o mercado fonográfico - com raras exceções, e fomentam o saudosismo em relação aos tempos em que a música era algo bem elaborado, que alimentava a alma e dava um tom poético à vida.


Informações


Quem aprecia o vinil ou deseja comprar agulhas para sua vitrola, pode visitar, além da loja O Vinil, que possui um acervo de sete mil exemplares, as lojas: Casa Barbosa, Cantinho da Música, Eletrônica Universal e Mundial, e os alfarrábios no Centro da cidade. As agulhas custam entre R$ 8,00 e R$ 100,00. Caso seja muito difícil de se encontrar, Kinkas sugere que se troque o cabeçote da vitrola, cujo valor é superior a R$ 50,00.

Gabriel Passos tem um projeto de criar o Clube do Vinil, onde todos os colecionadores poderão trocar informações e discos. Os interessados em entrar no clube podem entrar em contato com ele, através de seu e-mail: mistervinil@gmail.com

Arte popular nos salões do Palácio



Uma romaria de pés de madeira; um altar com cabeças, fitas e terços; quadros com imagens de santos; mãos, pernas e braços; as cenas do cotidiano retratadas em madeira e sucatas numa intensa explosão de cores: muito amarelo, branco, azul e encarnado. As nuanças sagradas e profanas da cultura popular pousaram nas salas do tradicional e imponente Museu Histórico Palácio Marechal Floriano Peixoto, localizado na Praça dos Martírios, com a exposição Coleção de Arte Popular Tania de Maya Pedrosa, que apresenta uma parcela do acervo da artista plástica.

A abertura da exposição ocorreu no dia 21 de agosto, com a presença de apaixonados por cultura popular e interessados no assunto. Sobre a busca acentuada do público por elementos dessa veia artística, ela explica: “as pessoas procuram entrar nessa vertente porque ela dá alegria a quem a contempla, dá mais alegria para quem a estuda e mais alegria ainda para quem a conhece. É um encanto para quem se dedica, transforma-se numa compulsividade: quanto mais você conhece artistas, mais você quer conhecer; quanto mais você faz comparações entre os lugares onde vivem os artistas, mais você quer fazer. Você fica insaciável”. E pelo que se pode notar, essa alegria é um ciclo interminável.

A idéia de realizar essa mostra surgiu há algum tempo e foi concretizada quando Tania Pedrosa recebeu o convite de Osvaldo Viégas, secretário de Cultura do Estado. Ela, que já foi conselheira de cultura, nutre um profundo amor pela arte popular, embora já tenha estudado arte erudita, realizou diversas viagens por Alagoas e regiões do Nordeste, a partir de 1969, com o intuito de conhecer os ateliês dos artistas, além de suas vidas e aspectos referentes ao lugar em que vivem, assim, iniciou a aquisição de obras, com foco na arte pictórica, como quadros, e só depois esculturas. Dessa forma, acumulou um acervo de 1.500 peças, das quais selecionou 422 para a exposição, de curadoria de Romeu de Mello Loureiro e montagem de Jerônimo Miranda, segundo Tania, “um grande conhecedor de arte popular”.

O critério de seleção se fundamentou na necessidade de apresentar um embasamento social, cultural e antropológico, para que os visitantes pudessem analisar o desenvolvimento cultural da arte popular de Alagoas, que traz consigo toda a identidade do povo alagoano e conta sua história. Com o mapa geográfico do Estado em mãos, Tania escolheu os artistas mais notáveis e aqueles mais humildes, esquecidos, que não têm pretensão de expor e precisam de reconhecimento, bem como de ajuda financeira. Depois, olhando o mapa do Brasil, optou por representar a região Nordeste do país. Segundo ela, tal escolha foi feita pela riqueza do celeiro cultural nordestino, que possui um povo sofrido, cheio de cultura, mas com pouco acesso à globalização.

Na mostra, estão expostos trabalhos de artistas como os alagoanos: Mestre Fernando, Ronaldo Aureliano, Zezito Guedes, Sil de Capela, Zé do Bispo, João da Lagoa, Irinéia, Manoel da Marinheira, além de obras de artistas de Pernambuco – a exemplo de Mestre Vitalino, Bahia, Sergipe e Rio Grande do Norte. Algumas delas são coletivas, às vezes, compostas por diversos membros de uma mesma família, caso de Manoel da Marinheira, revelando uma peculiaridade da cultura popular. Já os artistas que ensinam sua arte a seus parentes e pessoas da comunidade em que vivem, ou seja, aqueles que “fazem escolas”, são conhecidos como Mestres.

No caso de Alagoas, ela destaca que o Estado apresenta um aspecto muito importante para os estudos: uma cultura pouco perecível, com expressões adequadas à dura realidade que os artistas vivem, por isso tanta dedicação aos ex-votos – quadros, imagens, inscrições ou ainda representações de órgãos, geralmente de cera ou madeira, oferecidas aos santos de devoção para cumprir alguma promessa -, pois a religiosidade e a conservação dos costumes são fortes tendências no Nordeste. “Eu acredito que os ex-votos são uma parte muito importante da nossa cultura, porque revelam a relação entre as pessoas que fazem a promessa, o artista e as romarias. Essa relação começa com o sofrimento de pessoas que, muitas vezes, não têm condições financeiras de comprar remédios, então fazem promessas e se tratam com folhas medicinais. Quando alcançam a graça desejada, fazem romarias e oferecem os ex-votos, isso ocorre principalmente em Juazeiro, onde os ex-votos são levados ao Padre Cícero”, afirma.

A maioria dos ex-votos expostos é de artistas anônimos, um hábito bastante freqüente, pois a composição destes não é feita por artistas renomados. Alguns estudiosos já estão desenvolvendo trabalhos com as cabeças oferecidas em promessas, analisando suas feições, geralmente tristes e preocupadas, emitindo certa agressividade, fato esse que as situa no conceito de “art brut”, que, numa tradução literal, significa arte bruta.


Arte bruta

A art brut possui várias terminologias e foi – e continua sendo - fonte de pesquisas para muitos estudiosos da mente humana, a exemplo da psiquiatra alagoana Nise da Silveira e da crítica de arte e colecionadora Ceres Franco, brasileira que mora na França há 50 anos. Ela se constitui na expressão de imaginários mais agressivos, às vezes monstruosos, em geral figuras animalescas, com uso de expressões fortes e enlouquecidas, olhos esbugalhados, sorrisos com um ar macabro, que, embora façam parte da cultura popular, fogem aos seus moldes tradicionais, de anjos e santos, e foram inseridas na exposição por atingirem um âmbito social, psiquiátrico e artístico. Logo, os visitantes terão contato com dois universos da cultura popular: um ligado à religiosidade e outro, ao imaginário.

É interessante observar como as obras do acervo de Tania Pedrosa apresentam similaridades entre si e em relação a artistas bastante conhecidos no mundo das artes, a exemplo do pintor espanhol Pablo Picasso. De acordo com ela, isso ocorre instintivamente, por ação do inconsciente coletivo e, para melhor explicar tal fato, compara essa situação às obras encontradas nas cavernas, que estão presentes no campo artístico até os dias atuais: “Os artistas se renovam com a mesma literalidade, sem terem se conhecido”.

Considerada por Ledo Ivo, imortal da Academia Brasileira de Letras, como uma guardiã de tesouros, Tania acredita que as peças expostas e as outras que abriga em sua casa servirão não só para a apreciação, mas como objetos de estudo, visto que, se bem cuidadas, vão durar por muitos anos: “Elas podem até precisar de uma restauração, no futuro, mas nunca vão se acabar”, diz a colecionadora, que pretende transformar o acervo que possui em casa em um museu vivo, chamado “Casa do Imaginário”, sonho que pretende concretizar em breve e, para tanto, necessitará do apoio do Governo.

Tania Pedrosa atenta para a importância de divulgar os valores culturais alagoanos, inclusive para o fortalecimento da atividade turística, postura que muitos Estados estão adotando, visto que os turistas têm verdadeiro fascínio pela cultura popular. Porém, é fundamental que o alagoano conheça a arte que tanta relação tem com sua identidade e que isso se torne um hábito independente da idade que possua.


A exposição

A Coleção de Arte Popular Tania de Maya Pedrosa estará aberta à visitação até o dia 28 de dezembro, das 9h às 17h, no Museu Histórico Palácio Marechal Floriano Peixoto, com entrada gratuita. O acervo de Tania Pedrosa também está disponível no site www.taniapedrosa.com.br

sábado, 8 de setembro de 2007

Em busca do diferencial





Um fundo neutro. Branco no álbum, negro no slideshow, propício para emoldurar as imagens que retratam as cenas do cotidiano, ora imprevisíveis, ora elaboradas, surpreendentes e ousadas, sempre carregadas de emoções. O contraste é dado pela presença de duas cores: azul e rosa, que, há um certo tempo, passaram a ter um maior destaque no mundo virtual.

Com uma proposta de oferecer às pessoas um espaço para divulgarem suas fotografias, de modo organizado - como nos famigerados álbuns, contendo, inclusive, um espaço para os comentários de quem as visualiza, o site www.flickr.com, que se apresenta como “provavelmente o maior aplicativo on-line de gerenciamento e compartilhamento no mundo”, está conquistando cada vez mais adeptos, principalmente depois que a versão em português chegou à Internet. Através dele, principiantes e profissionais no campo da fotografia trocam informações sobre técnicas, iluminação, composição, bem como impressões e opiniões sobre os trabalhos expostos. Desse modo, nasce uma relação artista-obra-público, que em muito contribui para o desenvolvimento de uma percepção mais ampla e voltada para a arte, dando às fotografias uma conotação que vai além do “retrato de um instante”.

A câmera fotográfica, nos dias atuais, é praticamente um acessório. Livre dos filmes e do suspense de ter de esperar a revelação destes para conhecer o resultado do que foi fotografado, a máquina digital provocou uma verdadeira revolução no universo da fotografia: uma maciça produção, às vezes, até exacerbada, na qual nada escapa à objetiva, reuniões de família, festas, momentos de solidão, expressões fabricadas ou espontâneas, detalhes, enfim, qualquer coisa, literalmente, pode ser o objeto fotográfico, em especial no caso dos jovens. Assim, ocorreu uma banalização da imagem, que, utilizada apenas para revelar tais instantes a algumas pessoas, constituía-se numa atitude narcisista, sem fundamento, nem teor artístico, provocando um número expressivo de imagens capturadas automaticamente, onde se preza a quantidade e não a qualidade. Porém, como em todo os meios que reúnem indivíduos, existem exceções.

Seguindo a tendência de séculos anteriores que revelaram talentos juvenis, a exemplo do poeta Arthur Rimbaud, que fez verdadeiras obras-primas muito antes dos 30 anos, alguns jovens estão utilizando o meio virtual para desenvolver um trabalho mais consistente e voltado para a arte, adotando uma postura mais madura, direcionada para a criação de um estilo, um conceito ou apenas para imprimir sua essência e revelar sua forma de ver o mundo. Esse é o grande diferencial do Flickr em relação aos outros sites, é o que faz dele um canal para que seus participantes busquem construir um trabalho que será absorvido não só por seus amigos, mas por pessoas de todo o mundo, com diferentes vivências e olhares.

Em busca do inusitado

Romário Carnaúba, 20 anos, estudante de Administração da Ufal e apaixonado por fotografia, conheceu o Flickr vasculhando a Internet. Abriu sua conta em outubro de 2006 e, desde então, veicula suas fotografias favoritas no site, na verdade, exibe o que denomina como portfólio. Ele começou a fotografar em meados de 2004, época em que ganhou sua primeira máquina fotográfica, mas seu trabalho era voltado para um site de cobertura de eventos, na cidade de Viçosa, sua terra natal.

Apesar de não ter influências de fotógrafos famosos, preferindo se basear naquilo que observa, já possui um estilo próprio, utilizando jogos de luz e sombra, trabalhando com ângulos e composições, buscando desafios para fotografar o inusitado. Sobre a experiência de fotografar, ele afirma: “Em pequenos gestos, atos, eu enxergo uma fotografia... O mundo pára e só a cena que vejo se movimenta. É como num filme, tudo está escuro e eu só vejo a cena enquadrada”, enquanto fala, gesticula, em uma tentativa de mostrar alguns aspectos que prioriza em suas fotografias, como a espontaneidade. Quando sai com a câmera, sempre emprestada, pois está há um bom tempo sem o equipamento, busca não pensar no que vai capturar: “Deixo para o acaso, é o ver para fazer. Mas procuro transmitir sensações, sentimentos, por isso gosto de fotografar pessoas, capturar suas expressões, o movimento dos olhos”, segundo ele, à fotografia é possível até expressar palavras.

Com o Flickr, pôde compartilhar o seu trabalho com pessoas de todo o mundo, que, além de observá-lo, sempre tecem algum comentário, de um simples “parabéns” até análises mais profundas. Romário, que no site adotou a alcunha de Romaro, diz que o Flickr tem uma grande vantagem em relação aos demais sites, pois cede espaço para as fotografias, conservando a qualidade destas, o que é muito importante para os usuários do site, que se inscrevem nele, em geral, com o objetivo de expor suas produções. Em visitas ao site, ele afirma já ter conhecido muitos trabalhos dignos de outdoors, anúncios e exposições.

Em sua página, é possível visualizar fotografias de crianças, ensaios com uma banda de rock e com alguns amigos, imagens obtidas em um passeio pela feira e durante uma rave, temas variados, mas direcionadas para o foco artístico, pois pretende adquirir cada vez mais bagagem e, num futuro próximo, trabalhar com fotografia, provavelmente, publicitária.

Construindo um estilo

E foi conversando com Romário que Sionelly Leite, 20 anos, estudante de Jornalismo da Ufal, tomou conhecimento do site. Sua relação com a fotografia surgiu em 2005, quando a Universidade ficou parada por três meses, em decorrência de uma greve. “Ficava em casa, à tarde, sem fazer nada. Então, pegava a máquina, que estava jogada dentro de uma gaveta, e começava a fotografar o que achava interessante. Mas, com tantas tardes fotografando, fui buscando ver em cenas e situações do cotidiano uma nova visão... Foi a partir daí que comecei a achar a fotografia interessante, porque eu estava dentro da minha casa, e quando eu colocava a câmera diante de mim, era como se fosse tudo novo”, relembra.

Da intimidade de sua casa, saiu para as ruas, onde captura as diferentes realidades espalhadas pelas ruas maceioenses. Seu trabalho é mais voltado para o fotojornalismo, com influência do fotógrafo Sebastião Salgado, no qual tenta descrever situações por meio da captura de cenas ou expressões faciais, na linha de que uma imagem pode valer mais que mil palavras: “a beleza do fotojornalismo é poder mostrar às pessoas que elas passam pelas ruas, vêem crianças trabalhando, ao invés de estar na escola, e simplesmente ignoram. Através de uma foto, você vai poder fazer com que essa mesma pessoa pare e analise a mesma situação, de um outro jeito. Claro que a pretensão não é querer mudar o mundo, através disso, mas, de repente, fazer com que alguém sinta o que mesmo que você”, exemplifica.

Desde 2005, mantém suas fotos em sites direcionados para tal fim, mas, em maio deste ano, optou por canalizar seu trabalho em um só local, então, escolheu o Flickr, por sua proposta mais séria, que permite o contato com outras pessoas e a troca de informações construtivas. Trabalhando há dois anos e meio com fotojornalismo, ela tem recebido comentários positivos em seu Flickr: “não sei se por educação, mas as pessoas me dão incentivo, gostam do que faço... ainda tenho muito que aprender, estou no período de construção do meu estilo e de elevação da minha sensibilidade. Fotografia é algo muito incerto, porque tem aquele lance de ‘estar no lugar certo, com a câmera certa’.” Em relação ao seu estilo, nota-se uma melancolia poética, em crianças, idosos e mulheres, sempre destacando o olhar dessas pessoas.

Romário e Sionelly seguem ainda uma tendência que está em alta nos últimos tempos: a utilização do preto e branco, o que dá bastante expressividade às suas fotografias. “Eu faço as fotografias de modo normal, em cores, depois passo para preto e branco com um programa próprio para isso. Quero que as pessoas imaginem as cores, de acordo com o que sentem”, explica Romário.

Ponto de encontro

Na visão de Ricardo Maia, mestre em Psicologia Social pela PUC-SP, o Flickr é um movimento artístico-criativo internáutico, uma galeria virtual, algo típico da era digital. Ele considera que esta é uma proposta bastante interessante, pois permite que sejam realizadas trocas simbólicas de experiências estéticas, que influenciam no processo criativo, através do que denomina como sociabilidade intelecto-virtual. “Percebe-se que se formou um ponto de encontro virtual, de caráter criativo, que envolve uma tecnologia recente, caso da fotografia”, analisa.

Quanto à questão da mudança de foco, do caráter mais caseiro e festivo, para o artístico, Ricardo afirma que é uma revolução de uma cultura, algo como uma busca pelo encanto perdido, na qual cria-se uma identidade, através do diferencial. Isso é visível na necessidade que esses novos fotógrafos têm de retratar o cotidiano, constituindo-se numa prática quase científica de observação e experimentação, pois “o cotidiano é vida”. E é o diálogo com o outro que permite o crescimento do trabalho: “O indivíduo só pode ser reconhecido pelo outro, é uma espécie de espelho, que lhe permite ver suas falhas e o que faz de original”. O psicólogo afirma ainda: “Esse é um traço comum à sociedade pós-moderna, onde a imagem é cultuada ao extremo e a cibercultura reforça a dita ‘sociedade do espetáculo’.”.

www.flickr.com/photos/sil_leite

www.flickr.com/photos/romaro


Publicado no jornal A Notícia - Ano VI - Edição Nº 293