sábado, 21 de julho de 2007

Tesouros nas prateleiras


Há 45 anos, Maria do Socorro se mudou de Santana de Ipanema para Maceió, com o intuito de cuidar de um irmão que estava doente. Trabalhou em um hospital como fisioterapeuta, lá conheceu Roberto Santana e, após seis meses, eles se casaram. Ele possuía uma coleção de livros e revistas em quadrinhos e um interesse em trabalhar com esses artigos. Então, após receber uma indenização do hospital, começou a vender livros usados na porta de um colégio, depois no mercado, na Rua Dias Cabral e, por fim, estabeleceu-se no Alfarrábio Nossa Senhora do Socorro, próximo à Santa Casa de Misericórdia de Maceió, onde o negócio está firmado há 27 anos. Inicialmente com 250 revistas em quadrinhos e 50 livros, hoje compreende um acervo de mais de 50 mil exemplares, dispostos em 11 salas, entre livros e revistas de todos os gêneros, além de raridades como livros de direito dos séculos XVII e XVIII.

Essa é uma das muitas histórias guardadas entre as estantes dos alfarrábios, também conhecidos como sebos, localizados no Centro de Maceió, principalmente na Rua Pontes de Miranda. Assim como Dona Socorro e o marido, atualmente sem trabalhar devido à doença de Parkinson, muitos alagoanos se dedicam ao ofício de vender livros usados.

Diz a história que “A maldição do faraó”, mal que acometeu os colonizadores ingleses e provocou a morte de muitos deles, quando estes resolveram abrir os sarcófagos egípcios em busca de tesouros, não foi nada além de uma complicação respiratória causada pela exposição ao bolor e à umidade do ambiente. Quem nunca foi a um sebo, não deve alimentar uma imagem de um local insalubre, mal iluminado, com livros carcomidos pelas traças, perdidos na poeira. Muito pelo contrário, são bem organizados, com as obras separadas por autor, gênero, às vezes em ordem alfabética, que são espanadas, recebem tratamento com produtos especiais e são expostas ao sol periodicamente, para evitar problemas de saúde naqueles que os adquirirem.

Esses redutos de antiguidades literárias abrigam os escritos de grandes autores, como Dostoievski, Shakespeare, Gabriel García Márques, Lacan, Truman Capote, Freud, Saramago, Álvares de Azevedo, Jorge de Lima, Érico Veríssimo, Graciliano Ramos, Lêdo Ivo, Jorge Amado, Machado de Assis, entre tantos outros, em coletâneas, avulso, edições especiais e mais simples, nos mais variados preços, É possível encontrar livros de até R$ 2,00. E o preço é o grande atrativo dos alfarrábios, cujo público é formado, em sua maioria, por estudantes de todas as áreas, visto que as prateleiras estão cobertas de livros de direito, medicina, psicologia, sociologia, teatro, comunicação, engenharia, dicionários e cursos completos de línguas estrangeiras. Os interessados em montar bibliotecas em casa e em escolas também freqüentam o lugar.

Em geral, os livros chegam por meio de doação, venda ou troca. Segundo os proprietários, é muito comum as pessoas se desfazerem de livros quando um parente morre, ao se mudarem para um apartamento ou quando desejam adquirir volumes a que não tiveram acesso. Nesse processo, são considerados determinados critérios na estipulação do preço: importância histórica da obra, estado de conservação, grau de procura. Entretanto, não existe uma tabela fixa, pode-se, inclusive, negociar o valor do livro.

O cheiro do livro usado

Há quatro anos no paredão da Pontes de Miranda, Wilson Júnior vende, além dos livros, discos de vinil de música clássica. Tendo preferência pela literatura estrangeira, dentre os seus escritores favoritos estão Umberto Eco, Edgar Alan Poe, Thomas Mann e Flaubert, deste, tinha em mãos um livro, cuja edição datava de 1922. Após falar um pouco sobre a vida dentro desse universo que remete ao passado, ele confessou: “Eu gosto do cheiro de livro velho”.

A sua banca possui um acervo de revistas em quadrinhos que, de acordo com o estudante de jornalismo da Ufal, Gabriel Duarte, é o melhor da cidade. Gabriel freqüenta alfarrábios há oito anos e possui uma coleção de quase três mil gibis, a maioria comprados em tais estabelecimentos, não só pelo preço, mas também pela qualidade dos quadrinhos mais antigos.

Tempos áureos

“Hoje em dia, o movimento está fraco, mas há uns 15 anos, isso aqui vivia cheio. Eu tinha uns três ou quatro funcionários...”. Dona Socorro relembra os bons tempos do negócio e, com a diminuição dos clientes, às vezes pensa em vender o casarão com todos os livros. Esse enfraquecimento da busca por livros é percebida por todos os proprietários de alfarrábios.

Edvaldo Pereira, dono da Escritos e Discos, está no ramo há aproximadamente dez anos e acredita que essa é uma questão cultural. Suas áreas de interesse são sociologia e política, formando em Ciências Sociais, pela Ufal, aplica os conhecimentos obtidos para avaliar a situação do mercado de livros usados em Alagoas.

O problema vai além da pouca disposição do alagoano para a leitura, muito diferente dos tempos áureos, quando o Estado abrigava os maiores nomes da literatura nacional. A alta concentração de renda faz com que as pessoas optem por destinar o dinheiro que recebem às necessidades básicas, afastando-se cada vez mais desse hábito saudável que é ler. Tal quadro se reflete não só nos alfarrábios, mas nas livrarias, que acabam fechando por falta de clientes. Outra situação que o preocupa é a pirataria, alguns sebos vendem CDs e, com a venda desenfreada de álbuns musicais pirateados, os originais só atraem os colecionadores, visto que o valor é inferior ao das lojas, só que superior aos vendidos em camelôs.

É óbvio que não ocorrerá a extinção dos sebos, mas sua redução consiste em um fato preocupante. São eles que promovem um resgate da prática da leitura que se consolidou em meados do século XV, após a invenção da imprensa. É contraditório imaginar que em épocas passadas, os apaixonados por literatura liam em locais reservados, algumas vezes página a página, conseguidas no mercado negro, pois algumas obras eram proibidas, dessa forma, corriam o risco de ser presos. Já os autores de livros considerados subversivos podiam até ser condenados à morte.

Nos dias atuais, há total liberdade para aquisição de livros e sua difusão, porém, diversas pesquisas comprovam que o hábito da leitura segue o caminho oposto à crescente ascensão de meios como a televisão e a Internet, embora esta já disponibilize livros para download ou para serem lidos on-line. Tal opção ainda divide o público, visto que a maioria ainda prefere as versões impressas.

Os alfarrábios são a solução para aqueles que desejam seguir um conselho largamente difundido: “Desligue a televisão e vá ler um livro!”. E o melhor, sem gastar muito.



Publicado no jornal A Notícia - Ano VI - Edição Nº 286

Nenhum comentário: