domingo, 26 de agosto de 2007

O poder do improviso

Foto: Kelly Baêta

Um hábito típico dos cantadores de coco e embolada é dar aos mestres nomes de pássaros. Mário Francisco de Assis ainda era um menino quando fugiu com uma dupla de emboladores, que, um dia, apareceu em sua casa. Ele e esses dois amigos saiam de cidade em cidade, praticamente como ciganos, até dormiram em um cemitério abandonado, porém as dificuldades não os impediam de fazer suas canções cheias de rimas e improvisos. Nessas caminhadas, entre um coco de roda e outro, sempre tinha alguém que se encantava com aquela “coisa miudinha” cantando, o que acabou lhe rendendo o apelido de Mestre Verdelinho, em referência a um pequeno pássaro de mesmo nome.

Ele ganhou notoriedade quando integrou o Guerreiro do Mestre Pedro Teixeira, sendo até Mestre de Guerreiro em uma apresentação em Brasília. Foi assim que sua história começou a mudar, conseguiu um emprego no Teatro Deodoro, mas não abandonou aquilo que gosta e saber fazer. Embora não saiba escrever, Mestre Verdelinho é autor de canções que surpreendem pela riqueza de conteúdo, cujas temáticas têm complexidade filosófica, mas com a forma simples e direta, típica à cultura popular.

Esse importante expoente da cultura popular alagoana será o homenageado do Regional IV “A Festa do Coco”, que, segundo o organizador do evento, Tony Soares, visa a valorizar a cultura popular alagoana e fazer com que a nova geração conheça e se interesse por artistas que abastecem esse mercado. Em sua quarta edição, o evento contará com a participação das bandas Poeira Nordestina, Xique Baratinho, Gato Zarolho, Cumbuca e, é óbvio, do Mestre. Ainda haverá sorteio de brindes, exposições artesanais e a casa estará decorada com motivos regionais.

O Mestre dividirá o palco com seus filhos, Josenildo e Genilson, e Jurandir Bozo, vocalista da banda Poeira Nordestina, no repertório estão Dona Mariquinha, Balança o Galho da Limeira, A Masseira, de Tereza Félix, todas canções do CD de Verdelinho, UNIRversando, pagodes, em sua maioria. Mas antes que confusões sejam feitas, é preciso explicar: “pagode é um estilo de coco, bem alagoano, que tem o refrão, os entremeios e, no fim, o tropel”, explica Bozo. Tropel nada mais é que um forte ruído provocado por repetidas batidas dos pés no chão.

Jurandir Bozo diz que as músicas do Mestre possuem profundidade poética e cita como exemplo O Grande Poder, que versa sobre questões ligadas à interação entre o universo e as criaturas, gravada por Telma César, no CD do grupo Comadre Florzinha e pelo cantor e compositor Wado. Bozo ajudou na produção do CD de Verdelinho, que foi lançado no ano passado. Contendo 13 faixas, o álbum foi gravado em quase dois dias, com pouca verba e praticamente sem apoios institucionais, um reflexo visível da problemática que atinge a cultura alagoana, largamente discutida pelos artistas e que provoca um certo tipo de ostracismo, no qual as produções ficam mais nas residências do que nos palcos.

Muitos são os artistas que beberam da arte do Mestre Verdelinho, como relembra Bozo: “Busquei a cultura popular, através do Mestre, porque pensei quando o vi: isso sou eu. Aquilo remetia à minha infância, ao que via nas feiras em frente à minha casa, e é o que busco trazer para minha voz. Se hoje estou desenvolvendo esse trabalho é por causa da voz rouca e forte do Mestre Verdelinho”.

Elo entre o tradicional e o atual

Embora se trate de uma expressão da cultura tradicional, o show pretende atingir a um público diversificado, inclusive no que diz respeito à faixa etária: “A primeira edição, com as bandas Mr. Freeze, Gato Zarolho e Cumbuca, atingiu um público universitário, mas hoje desejo atingir a todas as idades”, afirma Tony, que está a três anos no ramo de produção de eventos dessa natureza, e, desde o ano passado, está a frente do Regional.

Ele aproveita a sua formação em Marketing para divulgar o evento para o maior número de pessoas possível e, para tanto, utilizou mídias alternativas que têm bastante alcance, caso do site de relacionamentos Orkut. Visitou os perfis, colocando quase que diariamente a programação do show. O argumento dele é pragmático: “A melhor forma de vender um produto é fazer com que ele chegue até seu consumidor direto e indireto, com um planejamento de marketing e de mídia, é o que busco fazer com esse show”.

A intenção, na verdade, é atrair os jovens para as manifestações que fazem parte da cultura popular, como o guerreiro e o coco de roda, que, com as novas tendências musicais, provenientes da cultura de massa, perderam seu espaço. Mas não de forma mecânica, pela obrigação de valorizar apenas por ser alagoano, pois não basta estudá-la e teorizá-la. É preciso senti-la, como diz Bozo: “Não é incomum ouvir os Mestres falarem de ‘fazer uma brincadeira’, em alguns lugares do Nordeste, os participantes recebem o nome de brincantes. Temos que levar as pessoas para dançar o coco, cantar o guerreiro. Por isso, o ensino da cultura popular nas escolas deve ser feito de forma lúdica, como uma atividade recreativa”.

A questão é bem mais complexa. Esse afastamento da juventude traz um problema que, em longo prazo, pode culminar com a extinção de alguns valores culturais. “Alagoas está anos-luz a frente dos outros Estados, no que diz respeito a produção cultural. Tem uma cena fértil, uma das mais atuantes do Brasil, mas os artistas estão envelhecendo. Não precisa fazer resgate cultural, pois os Mestres estão vivos, assim como nossa cultura, o que falta é compromisso da sociedade civil e do poder público”, critica Bozo.

O Regional IV “A festa do coco” busca um formato que situe a cultura tradicional no contexto globalizado, com infra-estrutura e atrações que realizam um trabalho que mantém os moldes tradicionais, mas inserem uma roupagem mais atual, sem cair no clichê. Essa fusão entre tradicional e atual está em grande evidência, tanto que muitos Mestres já têm seu material divulgado na Internet, chegando a possuir comunidades no Orkut, caso de Mestre Verdelinho e Nelson da Rabeca.

Janela

Uma forte relação de amor e dedicação move esses representantes da nova safra da cultura popular alagoana a lutar pelo reconhecimento dos precursores desse movimento artístico. Tony Soares pretende criar um mercado voltado para a cultura alagoana mais atuante, com shows freqüentes, entretanto, isso ainda depende muito do público, por isso, o empenho na divulgação.

Pelo que parece, a tão esperada eclosão da cultura alagoana é iminente, embora falte organização e interação entre os artistas, o passo inicial há muito foi dado. Canções, poemas, coreografias, peças, esculturas e quadros pululam em abundância, em resumo, a cena pode até não ser atuante, mas a criatividade funciona freneticamente.

Para quem ainda não conhece a cultura caeté, além do convite para o Regional IV “A festa do coco”, fica uma reflexão de Jurandir Bozo, sobre o que é cultura popular: “Cultura popular não é se voltar para si, é se voltar para o outro. É se debruçar sobre uma janela, nem que seja a do cantinho do seu olho e ver além da pálpebra, ver o vendedor de açúcar, alguém na rua, o cara que vende bala no ônibus. Fazer essa cultura de forma contemporânea é praticar o sonho, embora esteja longe do ideal... Nossa cultura ainda está viva! Mas tem algo que sempre questiono: O que vem depois dos Mestres?”.


Publicado no jornal A Notícia - Ano VI - Edição Nº 291

2 comentários:

Anônimo disse...

Interessante a abordagem feita por PAula, A cultura alagoana sofre com o esquecimento, Mat�ria e eventos como o que aconteceu no Jaragu� nos motivam a acreditar que nem tudo est� perdido! Parab�ns Paulinha, a arte regional corre em suas veias (literalmente).

Estêvão dos Anjos disse...

O que mais me preocupou ao ler esse texto, e era algo q ainda não tinha me passado pela cabeça, é " falecimento" de nossa cultura com a morte de nossos mestres. A única esperança q temos são os trabalhos como o do Bozo e o seu Paulinha grandes presevardores e valorizadores de nossa cultura.