terça-feira, 23 de outubro de 2007

Flor de mandacaru

Quem está habituado a ouvir, nas tardes de sábado, a bela voz de Gal Monteiro, no programa Vida de artista, da rádio Educativa FM, vai se surpreender com sua atuação no campo das letras. Propagadora do jornalismo cultural, lançará no dia 23 de outubro, na Bienal Nacional do Livro, um livro de contos que expressam a sua essência, as observações que faz do cotidiano, utilizando personagens do seu convívio, das ruas e de viagens que realiza, com algumas pitadas de ficção. Se eu calar você me esquece, se eu contar você me abraça? foi um dos vencedores do prêmio Alagoas em cena, de 2006, na categoria conto.

O livro, editado pela Edufal, reúne 10 contos de temáticas completamente diferentes, onde Gal transita entre narradora e personagem, alternando entre um e outro, em um intenso mergulho no universo da arte de contar histórias, uma grande paixão da jornalista. Quando se coloca como protagonista de um conto, dota-se de aspectos que gostaria de ter, caracteres que revelam seus anseios e pulsões mais intensas. Segundo ela, a inscrição no projeto deu-se de forma um tanto desordenada, caótica, da seleção dos contos à escolha do título, principalmente porque, na época, estava com impasses profissionais, além das típicas problemáticas pessoais, que,de certa forma, fomentam a produção artística da autora.

Primeiro, ela fez um apanhado de tudo que havia produzido, principalmente nos tempos de faculdade, embora tenha o hábito de escrever desde a infância, quando preenchia páginas e mais páginas de diários, descrevendo “as ninfas dos bosques de Viena”. Alguns deles passaram por revisões, outros foram totalmente reformulados, a exemplo de seu poema que ficou em segundo lugar, num concurso promovido na época em que cursava jornalismo na Ufal, encontrou-o manuscrito, conservando a mancha de vinho que sobre ele caiu, no dia da premiação.


Realismo fantástico


Seus contos possuem algumas descrições dos absurdos da vida, beirando o realismo fantástico, como no conto em que descreve a saga de dois vendedores de lingerie, mineiros, que, após descobrirem o que é marketing empresarial, no sentido de inovar e ampliar o seu mercado, fazem uma liquidação dentro de uma igreja; outros deságuam no campo da biografia; alguns versam sobre o jornalismo, mas todos traduzem Gal Monteiro, em especial o conto que encerra o livro De volta à Vila Rica - De Marília & Dirceu a Maiakovski & Lili. A autora possui uma intensa relação com Minas Gerais, terra que lhe deu vínculos, amores e vivências.

Então, só restava a escolha do título para finalmente inscrever-se no Alagoas em Cena. Embora goste de intitular textos, sentiu uma certa dificuldade em nomear seu primeiro livro, porém, em um insight, dentro do ônibus, o nome simplesmente veio, sem um sentido previamente elaborado, mas bastante conveniente à cena cultural alagoana e ao projeto de Gal Monteiro. O título possui várias conotações, pode ser traduzido como a necessidade do artista, de um modo geral, de ser reconhecido, a luta do conto contra o silêncio, a efemeridade da palavra ou, de forma mais simples, a sede por um afago, por um instante de atenção após dividir-se determinado instante.


Um Deus que morre todo dia


O prefácio foi elaborado pela própria autora, com a denominação Um Deus que morre todo dia, levanta questões filosóficas acerca do ofício do escritor, que nasce e morre todos os dias, pois é dotado da capacidade de criar e recriar os fatos. Daí a relação que faz entre este e a fênix, ave mitológica que renasce das cinzas. Ela classifica o escritor como “um ser dotado de emoções, de todas elas, se preciso. Ora um personagem, ora outro, ele segue formando um caleidoscópio que, ao fim de tudo, é sua imagem e semelhança”. A orelha é de autoria de Elenilda Oliveira, também jornalista e amiga de longas datas de Gal, já Agélio Novaes, artista plástico, concedeu uma de suas obras para a ilustração da capa.

Seus personagens são geralmente amigos que, algumas vezes, têm dificuldade para se “encontrar” nas ações e peculiaridades retratadas por Gal, que o faz com muita sutileza, trocando-lhes os nomes e dando-lhes uma nova personalidade.

Fã declarada de histórias em quadrinhos, considera-se uma leitora aberta aos mais diversos segmentos da literatura e acredita que os autores que conhece constituem em uma base para suas produções, mas não indica influências específicas, apesar de admirar Machado de Assis, Graciliano Ramos e escritores contemporâneos como Sidney Wanderley, Arriete Vilela, Carlos Nealdo, Vanessa Alencar, Nilton Resende, enfim, uma vasta lista que engloba diferentes estilos, de maneira rica, e que cresce gradativamente. Em geral, focaliza seus contos em suas experiências, na percepção da força das cidades e na expressividade dos desconhecidos, que tanto se revelam, mostram-se como protagonistas nos pontos de ônibus e esquinas.

Gal Monteiro diz que seus textos se enquadram em um tipo de “romantismo urbano”, visto que buscam realizar uma “leitura romântica do mundo”, mas não ligada a príncipes encantados e afins, apesar de ter uma forte admiração por castelos, sótãos, e porões. É uma visão que se prende ao belo em suas mais variadas formas, de modo libertário e desapegado dos padrões convencionais, “impregnada de informações, com ruídos na comunicação, que contém as decepções, mágoas, tristezas e experiências de todos os quilates, um verdadeiro refúgio para quando se deseja sair da realidade”, afirma.

Ela explica que possui uma relação crítica com seus escritos, pois não costuma se deslumbrar com os comentários, geralmente elogios, que recebe de amigos, como a jornalista Lúcia Rocha. Também está aberta a críticas, visto que são etapas fundamentais ao processo criativo de qualquer artista, seja ele da música, do teatro ou da literatura.


Musicando versos


No que concerne ao campo das artes, Gal Monteiro enveredou por grande parte das vertentes. Além de poesias e contos, possui composições com os cantores Deyves e Júnior Almeida, musicando, inclusive, alguns versos, tendo a voz como instrumento musical. Participante do Coretfal, ela já fez alguns shows, o último, em 2004, batizado como Fênix, relembrou os tempos em que era vocalista da banda Caçoa mas não manga, grupo formado por 11 amigos, que movimentou a cena musical alagoana nos anos 1980.
Acostumada ao ritmo frenético das redações de jornal, sente-se bastante a vontade com a liberdade que o texto literário possui, que se permite ficar inerte, por dias, anos, aguardando o momento conveniente para ser moldado. A experiência da participação em um projeto que contempla produções locais estimulou bastante Gal Monteiro, não só a produzir novos contos, mas também na elaboração de um novo livro.

Se eu calar você me esquece, se eu contar você me abraça? poderia ser comparado à flor de mandacaru, que se mostra altiva e bela, mesmo dentre os espinhos e a paisagem árida, pois expressa o fluir das emoções, a precisão observadora do jornalismo aliada à visão dos indivíduos como personagens de uma encenação ilimitada, imprevisível, onde os sentimentos se misturam e as mentiras são verdades disfarçadas e maquiadas, prontas a serem contestadas ou incluídas nos padrões do crível.


Trecho do livro


“Os olhos do rapaz brilhavam, sob o sol frio de final de tarde e, mal disfarçadas, duas lágrimas grossas e sentidas desceram-lhe pela face rosada. E mais duas. E mais outras tantas. Lúcia apenas pousou uma das mãos sobre o ombro do moço, lembrando-lhe que poderia escolher entre falar e apenas desaguar”. (De volta à Vila Rica - De Marília & Dirceu a Maiakovski & Lili, pg. 77)

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Recitador de encantos


Foto: Raul Spinassé

Na época em que os alto-falantes, espalhados pelas ruas, tocavam Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e Dolores Duran, um grupo de garotos percorria a feira de Murici, gastando suas moedas com carrinhos e cavalos de pau, fabricando, com suas brincadeiras, os corriqueiros sonhos infantis. Entretanto, um deles era diferente.

Ele preferia comprar violinhas de cordas de arame, bem como montar baterias com caixas de papelão e panelas, que ficavam bastante amassadas devido às repetidas pancadas, o que muito desagradava à sua mãe. Daí a razão de concluir que a música entrou em sua vida, além de precocemente, em um processo inverso: ela o escolheu, foi uma intensa paixão que soube conquistá-lo, pois a ele se insinua e instiga-lhe dia-a-dia, tal que a musa de Internet Coco, sua canção mais conhecida, é “um vício, um custo benefício, com cara de ofício, com jeito de divã”.

Este é Mácleim, cantor, compositor e um dos artistas mais atuantes do mercado fonográfico alagoano, que se considera um “recitador”, alguém que recicla os elementos produzidos pelos grandes nomes da música. Dono de uma carreira marcada por participações em festivais e shows em território nacional e no exterior, é autor de três CDs: Panambiverá, Internet Coco e Ao vivo e Aos Outros, e, em agosto deste ano, uma música de sua autoria, Valsinha de Esquinas, ficou em terceiro lugar no concurso internacional Lusavox, tendo como intérprete a cantora Irina Costa. Na próxima terça-feira, 09 de outubro, ele vai apresentar pela primeira vez o show Esses Poetas, parte do projeto de mesmo nome que vai trazer um CD e um livro, produzidos pelo selo Batuta, em uma convergência entre literatura, artes plásticas e música, que serão lançados em 2008.

Versos cantados

O trabalho de Mácleim reúne obras de 13 poetas alagoanos musicadas por ele, o que se constitui em um desafio quando se é um artista libertário em suas composições, que se permite trabalhar de modo circunstancial, concebendo a esmo a porção bruta para, aos poucos, lapidá-la. Era preciso musicar os poemas sem alterar suas estruturas, com coerência e realçando-lhes a expressividade, tarefa na qual “a inspiração ocorre em função do trabalho e não o contrário” - diz. E foi o que ele fez, manteve as características originais e a alma dos poemas, até porque os considera obras consumadas.

Na voz de Mácleim estarão versos de Arriete Vilela, Ledo Ivo, Jorge de Lima, Maurício de Macedo, José Geraldo, Sidney Wanderley, Diógenes Júnior, Jorge Cooper, Gonzaga Leão, Edvaldo Damião, Ronaldo de Andrade, Paulo Renault e Otávio Cabral, integrantes de diversas gerações da expressão literária alagoana, cujas obras possuem valor histórico, cultural e artístico.

Inicialmente um projeto individual, onde a coletividade era representada pelos poetas, adquiriu novas dimensões após um período de maturação de sete anos, desde o processo de pesquisa dos poemas até a transformação destes no que denomina como “uma estética musical”. Alguns artistas foram convidados para fazer uma participação especial e logo se formou uma miscelânea que reúne a nata da música alagoana: Leureny Barbosa, Carlos Moura, Wilma Araújo, Everaldo Borges, Felix Baigon, Norberto Vinhas, Almir Medeiros, Jiuliano Gomes, Júnior Almeida, Clara Barreiros e o baterista holandês Olaff Keus. Além de artistas do cenário musical brasileiro, a exemplo de Edu Morelenbaum, David Ganc, Fernando Melo, Carlos Balla e Djavan, esses três últimos, também alagoanos.

Djavan foi o último artista a confirmar sua presença no projeto Esses Poetas. Convidado no dia da inauguração do Teatro Gustavo Leite, no Centro de Convenções, ele aceitou, entretanto, não acertou com Mácleim os detalhes sobre essa participação, deixando para uma ocasião mais oportuna. Assim que deu início à produção do projeto, Mácleim avisou a Djavan por e-mail e ficou aguardando uma resposta, que veio recentemente, numa entrevista dada por ele, na qual deu o recado de que iria participar do projeto. Novos contatos já foram feitos e Djavan vai conceder sua voz a uma das canções do CD entre os dias 18 e 22 de outubro, ou seja, daqui a poucos dias, em seu próprio estúdio.

Porém, nesse primeiro show, não será possível trazer todos esses artistas, então foi formada uma banda base, composta por Dudu Athayde – bateria, Felix Baigon – contrabaixo acústico e elétrico, assinando também a direção musical, Jiuliano Gomes – piano, teclado e loops, e Everaldo Borges – saxofones e flauta. Mas, com o intuito de deixar o público em contato com o clima do CD, serão acrescentados loops e samples, que são inserções sonoras, tais como efeitos, guitarras, vozes, percussões e instrumentos exóticos, como alaúde, cítara e tabla. No repertório, além dos 13 poemas, Mácleim vai tocar músicas de outros CDs de sua autoria, como Nigromantes, Outubro ou Nada e Internet Coco. Os convidados especiais serão: Leureny Barbosa, Wilma Araújo, Júnior Almeida e Wilson Miranda.

Processo de gravação do CD

Para a gravação do CD, foi feita uma pré-produção na casa de Jiuliano Gomes, por meio de um processo coletivo, no qual foram trabalhadas todas as idéias de Mácleim, que, apesar de ter a possibilidade de contar com softwares avançados, não abriu mão de um gravador de fita. Essas idéias foram passadas para Everaldo Borges, que as apresentou aos convidados. Depois eles foram para o Rio de Janeiro, onde gravaram as bases das músicas – bateria, baixo e piano acústicos, estabelecendo a configuração instrumental do projeto. Um detalhe interessante é que a gravação foi realizada da mesma forma que se fazia antigamente: Carlos Balla, Jiuliano e Felix Baigon, após vários ensaios, gravaram as canções do início ao fim, em tomadas definitivas e sem cortes, tocando juntos, como num show ao vivo – atualmente, os músicos tocam sozinhos e depois tudo é “costurado”. Em Maceió, foram gravados os metais, os loops e as vozes dos artistas convidados.

De volta ao Rio, eles iniciaram o processo de mixagem e masterização, que nada mais é que a finalização e a padronização do CD, uma atividade bastante cansativa, devido às infinitas possibilidades que lhes eram dadas para compor o projeto. Entretanto, segundo Felix Baigon, o clima em estúdio era sempre muito agradável e construtivo, não só pelo contato com músicos experientes, caso do baterista Carlos Balla, que já tocou com artistas renomados, como Gal Costa, Djavan, Chico Buarque e Caetano Veloso, mas pelo choque de idéias, que levava a discussões sobre a escolha do que era ou não relevante para a concepção do trabalho.

Ele e Mácleim destacam um incidente que ocorreu no arranjo de Quem, poema de Sidney Wanderley. Baigon se enganou e enviou Zumbi, poema de Jorge de Lima, para o arranjador Edu Morelenbaum. O lapso só foi notado quando eles foram ouvir a música, para saber como tinha ficado. O grande problema é que Zumbi já possuía um arranjo de metais – saxofone, trompete e trombone, elaborado por Jiuliano e Everaldo, e Morelenbaum, havia composto um arranjo de madeiras – clarinete, clarone e flautas. Após um período de caos e algumas análises das partituras, eles notaram que os arranjos casavam perfeitamente e utilizaram os dois. E Quem? ganhou um novo arranjo.

O projeto

Acostumado a embeber-se de diversas vertentes das artes como o cinema, as artes plásticas e, principalmente, a literatura, como de Nigromantes, composição cujo tema explícito é a obra Dom Quixote de La Mancha – de Miguel de Cervantes, Mácleim faz, em Esses Poetas, um mergulho no universo das expressões artísticas alagoanas, através das canções, dos poemas e da proposta de seu projeto, que une música, literatura e artes plásticas.

Para a composição do livro e do encarte do CD, ocorrerá um concurso de desenho, realizado em escolas públicas das cidades de origem dos poetas, cujo tema será a impressão que os estudantes tiveram ao ler os poemas e escutar as canções. Tal iniciativa é um incentivo à divulgação e ao estudo da literatura alagoana, a fim de promover o reconhecimento de seus produtos culturais e despertar novos talentos, nas três áreas de abrangência do projeto Esses Poetas - música, literatura ou artes plásticas. Além disso, haverá as biografias, que virão resumidas no encarte, e caricaturas dos poetas, feitas por Simone Cavalcante e pelo jornalista Ênio Lins, respectivamente. Todavia, tudo isso tem previsão para ser lançado em 2008, logo, o público terá apenas o show para contemplar, por enquanto.

Esses Poetas

Esses Poetas pode ser considerada uma produção de destaque, um estandarte da cultura alagoana. Sua primeira apresentação será no dia 09 de outubro, terça-feira, no Teatro Deodoro, às 19:30h. Como em todos os eventos que fazem parte da grade do projeto Teatro Deodoro é o Maior Barato, o ingresso custa R$ 2,00. Informações: 3315-5665

Versos do poeta sapateiro

Cena do documentário O Lambe Sola


Entre pregos e solados, cola e sapatos, poemas matutos, que falam de momentos do cotidiano, utilizando a linguagem do homem simples, caipira na escrita e na forma de declamar, mesclando sabedoria popular, pitadas de humor, com espaço até para instantes lascivos. Essa foi a realidade capturada por Celso Brandão, no curta O Lambe-Sola, cujo protagonista é o poeta e sapateiro Antonio Aurélio de Morais, que se auto-intitulou Lambe-Sola, mas também é conhecido como Mestre Tonho Lambe-Sola e Pé Quebrado. Celso afirma que esse apelido nasceu do ofício de Antonio, visto que, no ato de colar os sapatos, os sapateiros fazem com o pincel um “movimento de lamber”.

Lambe-Sola nasceu em Atalaia, mas passou grande parte de sua vida em Viçosa, onde aprendeu e exerceu sua profissão. Apenas aos 45 anos de idade é que iniciou sua alfabetização, percorrendo de cartilhas do ABC a gramáticas e dicionários renomados, como o Dicionário Aurélio. Do aprendizado passou para a composição de poemas, chegando a escrever um livro “Versos de um Lambe-Sola”, que já está na terceira edição e possui 40 poemas, alguns deles selecionados para compor o documentário, a exemplo de “Pé-Quebrado Profissão Ingrata” e “Cassação dus Santos” – ver box. O trabalho de captura de imagens começou em 2002, porém, Celso teve que fazer uma viagem e interrompeu a produção de O Lambe-Sola. Nesse período em que o documentário ficou parado, Mestre Lambe-Sola sofreu um AVC - Acidente Vascular Cerebral e parou de fazer poemas, entretanto não deixou de declamá-los. Os trabalhos foram retomados após o cineasta ter assistido a alguns filmes sobre pessoas deficientes durante os jogos Para Pan-americanos, ocorridos no Rio de Janeiro, então, de volta a Maceió, Brandão muniu-se de câmera e partiu para as gravações do que se pode denominar como segunda parte do documentário.

O tempo é um elemento bastante importante no curta de Celso. Os 18 minutos e 45 segundos são marcados pela presença constante de um trem, que surgiu por acaso nas gravações e foi muito bem aproveitado. Entre os versos de Lambe-Sola, as passagens do trem e cenas da cidade, foram incluídas fotografias antigas, que ilustram e dão dinamicidade ao documentário. Outro fator de relevância é o jogo de similaridades e contrastes: enquanto o poeta declama Cassação dus Santos, vê-se ao fundo a imagem de uma igreja. O poema “A Si Pão Fosse Muié”, também conta com esse diálogo entre imagem e texto, pois, no instante em que o Mestre fala: “Gosto munto das muié / Dô tudo quanto elas qué / Rôpa, carçado i carinho / Mai si ela num fô fie / Ganha tombém pontapé / I mãozada nu fucinho”, aparece um homem batendo em uma boneca de pano. Segundo Celso, era apenas um rapaz na rua, que estava com a boneca - enorme, por sinal, e começou a bater nela. “Mas essa associação foi um trabalho da edição, às vezes, quando eu sugeria alguma coisa, o Pedro Octávio já tinha feito”, diz.

O contraste é dado pelas duas épocas retratadas, os anos de 2002 e 2007. O Mestre Lambe-Sola gesticulando, cheio de expressões, falando em pé ou martelando um sapato, de camiseta regata é completamente diferente do “outro” Mestre Lambe-Sola, camisa branca, boina xadrez, sentado, colocando a mão no queixo quando esquecia algum fragmento do poema. E a câmera se aproximando cada vez mais do rosto dele, dando dramaticidade às cenas, direcionando o olhar do espectador. Entretanto, em nenhum momento as conseqüências do AVC figuram no documentário. Apesar do “esquecimento” estar em close, o que se destaca sempre é a atuação do poeta.

O olhar e os personagens

Pedro Octávio é o sobrinho de Celso. Aos 21 anos, já trabalha com edição de vídeos e a produção de curtas experimentais. Em 2004, fez sua primeira atuação em produções do tio, editando o filme “O dote de José Chalé”, porém, embora seja uma atividade que demanda muita atenção e horas de trabalho, ele afirma, com muita naturalidade, gostar do que faz. O processo de edição de O Lambe-Sola durou duas semanas, nas quais foram analisadas as mais de duas horas de gravação, selecionadas as cenas e realizada a montagem do documentário. Pode-se afirmar que a quantidade de horas gravadas foi muito pequena, visto que, no universo do cinema, é possível até ser necessário gravar 100 horas para produzir 1 hora.

Celso Brandão alega a sorte como o fator para tal façanha, mas, tendo em vista que ele é o cineasta que mais produziu em Alagoas, a experiência também deve ter sido de grande valia. Dentre suas obras estão: Reflexos, baseado na canção Clair de Lune, de Claude Debussy; Semeadura; Faramim Iemanjá; Alegrando; Feira do Passarinho; Passeio no Céu – Torres Andorres; Medicina Popular; Cerâmica Utilitária Cariri; Mandioca da Terra à Mesa, filmes que alcançaram premiações no extinto Festival de Cinema Brasileiro de Penedo, além de A Sede e a Fonte; Ponto das Ervas, que concorreu ao prêmio de melhor trilha sonora no Festival de Brasília, participou do Medical Filme Festival, em Nova Iorque, e foi produzido por Cacá Diegues, que denominou as produções de Celso como “pequenas obras-primas”; Chão de Casas e Memórias da Vida e do Trabalho, selecionado para o Festival Internacional de Filmes Etnográficos.

O olhar dele foi moldado pela fotografia, paixão que anda de mãos dadas com o cinema. Ele ganhou sua primeira câmera de seu pai, aos 13 anos, e desde então não parou mais de fotografar. Quanto ao cinema, recebeu uma câmera Super-8 de uma amiga, que lhe deu a responsabilidade de fazer um filme. Foi quando ele fez Reflexos e continuou a produzir incessantemente. Porém, com a chegada do VHS, uma mídia mais perecível, ele se desencantou um pouco com o cinema e se dedicou à fotografia em preto e branco. Seu retorno à sétima arte se deu devido às novas tecnologias, que são mais baratas e oferecem um resultado com qualidade, em especial as mídias digitais.

Quando perguntado sobre como conhece seus personagens, ele responde de forma sucinta: “Andando”. Em viagens, passeios, enquanto volta para casa, enfim, em qualquer ocasião, Celso procura se aproximar das pessoas e assim fica sabendo de suas vidas e histórias, o que pode lhe trazer uma infinidade de idéias e, às vezes, já lhe oferecem algo pronto, como um pescador que fez um discurso sobre o lançamento de impurezas de uma usina no rio em que ele pescava, gravado por Celso, e que poderá ser aproveitado para um curta acerca da questão ambiental.


O Lambe-Sola

O Lambe-Sola teve sua primeira exibição no dia 24 de setembro, dentro da programação da II Mostra de Documentários do Cine Sesi Pajuçara, e foi bem recebido pelo público. Sobre a sensação de ver seu documentário, Celso diz: “É bom ver um vídeo projetado em tela de cinema, com uma platéia de idosos e jovens, com a presença do protagonista”. Na ocasião, Antonio Aurélio de Morais, o Mestre Lambe-Sola, estava lançando a terceira edição de seu livro. Com música de Zé do Cavaquinho, natural de Viçosa, O Lambe-Sola contou com o apoio no roteiro e na produção de Fernando Fiúza e Sidney Wanderley.

O cinema alagoano


De acordo com Almir Guilhermino, também cineasta, a produção cinematográfica de Alagoas é mais voltada para documentários, em virtude de todas as necessidades estruturais e financeiras que uma obra de ficção demanda. “No cinema alagoano é possível fazer três cortes: os anos 1980, os anos 1990 e esta nova década”, explica. Mas ressalta: “Chamam de cinema, mas, na verdade, são vídeos, já que não são produzidos em película”. A primeira geração, composta por ele, Brandão, Joaquim Alves e Hermano Figueiredo é proveniente dos cineclubes, onde assistiam a filmes não comerciais, portanto, não submetidos à censura, um cinema atrelado à contestação. Mas se existiu uma mola propulsora para as produções alagoanas foi o Festival Cinema Brasileiro de Penedo, ocorrido na década de 1970.

Ele afirma também que as obras alagoanas no campo do cinema têm bastante qualidade, mas o que falta é incentivo do Estado e interesse do público, embora tenha citado o caso do documentário de Siloé Amorim, O Quebra de Xangô, como um exemplo positivo, visto que em sua exibição, o Teatro Gustavo Leite, do Centro de Convenções, estava lotado. Logo, a situação está se tornando melhor, “principalmente pelo apoio do Sesc e do Sesi, na figura do Marcos Sampaio”, completa.

Autor dos filmes Tana’s Take, Anônima Paulicéia de Person, Yerma, Colagens, Acendedor de Lampiões e documentários, Guilhermino atenta para a necessidade de incentivar a produção de filmes da nova geração, citando como exemplo os estudantes de Comunicação da Ufal, a quem ele considera que os cineastas mais experientes deveriam dar apoio na produção e no que fosse necessário. Além disso, lembra da importância de reativar as leis de fomento ao cinema e sugere que ocorra um novo festival de cinema alagoano, para “amarrar” todas as produções e apresentá-las ao público.

Como nomes do cinema alagoano, pode-se citar, além de Celso Brandão e Almir Guilhermino, Hermano Figueiredo, Joaquim Alves, Pedro Rocha, Werner Salles e Thalles Gomes Gamello.

Trechos do livro:

Pé-Quebrado Profissão Ingrata


“Trabáio a mai de trintano / Na arte di sapatêro / Nunca consegui dinhêro / Argum / Trabáio às vêis in jinjum / Di manhã inté mêio-dia / Passando tôda gunia / Di fome...”


Cassação dus Santos

“Vala-me Deus, tá chegando / U fim dessa geração / Sêio qui in riba du chão / Tudo vai levá u créu / Taí u siná izato / Já tão caçando us mandato / Inté dus santo du céu...”